"A tentativa de desmanche do Ministério Público brasileiro continua...!" João Gaspar Rodrigues

No Brasil existem duas forças que se digladiam: de um lado, a força democrática e do outro, a antidemocrática. Ambas contam com poderosos combatentes. A diferença é que o segundo poder lança suas fichas nos bastidores e recheia suas ações com uma camada generosa de "boas intenções", e ainda dispõe de mecanismos do próprio Estado para conferir legitimidade às suas iniciativas1.

Há poucos dias, todavia, assistimos um fato histórico, o despertar terrível da força democrática por excelência: o povo. Diante desse titã, a classe política recuou em algumas medidas claramente sabotadoras da democracia brasileira, dentre elas, a terrífica PEC 37, que objetivava retirar o poder investigatório do Ministério Público e atribuí-lo exclusivamente às polícias. O poder incontrastável do povo fez-se sentir sobre "representantes que não representam", e que por instantes passaram a agir como verdadeiros representantes, cônscios de suas obrigações e de seus deveres públicos (sempre com uma pitada de velhacaria, típica da classe). O povo repôs a democracia brasileira nos trilhos, corrigiu-lhe os rumos. A pergunta que não quer calar é a seguinte: até quando?

Lamentavelmente, o povo não pode ficar em eterno estado de vigilância nas ruas, pois é constituído de cidadãos honestos que precisam trabalhar, estudar, divertir-se, viver, construir o futuro, enfim. E tal "vigilância nas ruas" (a manutenção massiva do povo de sobreaviso) também não pode perdurar indefinidamente por outro importante motivo: teríamos, em tese, uma situação pré-revolucionária ou até revolucionária (Decouflé, 1974, p. 105). A democracia representativa veio justamente solucionar o problema intransponível de reunir milhões de pessoas para deliberar todos os dias sobre os negócios públicos. O certo é que, nessa crônica crise de representação política (em que ninguém, nos seus anseios, desejos e interesses, se sente efetivamente representado) e falta de credibilidade do Congresso Nacional, enquanto o pastor cochila, o lobo faz a festa.

Não há dúvida de que o preço da liberdade e da democracia é a eterna vigilância, pois as forças antidemocráticas têm a determinação típica do criminoso em contraste à timidez e à calma sensatez do homem honesto. Embora vencidas numa batalha, essas forças recuam um pouco, mas esse recuo é apenas para alavancar melhor a próxima arrancada.

Nenhuma democracia moderna sobrevive e se desenvolve se não contar com uma série de mecanismos de controle, fiscalização, vigilância e responsabilização. Para isso, existem instituições que são predispostas constitucionalmente para "defender o regime democrático" ou para exercer uma espécie valiosa de "vigilância democrática" (ou "guardiania", na terminologia de Robert Dahl, 2012, p. 86). O Ministério Público por deferência do constituinte originário é uma dessas instituições (CF, art. 127, caput). E seus membros no desempenho dessas funções (controle, fiscalização, vigilância e responsabilização) se submetem, como dizia Roberto Lyra (1989, p. 159), "como nenhum outro, às vinganças e aos ódios pela natureza de sua ação contra os piores, os mais ousados, os mais irresponsáveis e tanto mais acirrados quanto mais intransigente, mais eficiente e mais digna for a vigilância do órgão da sociedade".

Natural, portanto, que quanto mais o Ministério Público for combativo e defensor aguerrido da democracia brasileira, investigando, denunciando e responsabilizando, mais se tornará um alvo maiúsculo para a artilharia das forças antidemocráticas. Destruir ou enfraquecer o Ministério Público vale por matar o cão infernal da mitologia (Cérbero) e deixar as portasdo inferno (leia-se, ladroagem, corrupção, improbidade etc.) livres para os corruptos, ladrões, ímprobos e uma casta política irresponsável.

Para alívio de todos, saiu de cena a PEC 37 ("derrubada" pelos parlamentares sob a pressão das ruas), mas no horizonte sombrio toma-lhe o lugar a PEC 75, de autoria do Senador petista Humberto Costa, cujo objetivo épossibilitar a aplicação da pena de demissão aos integrantes do Ministério Público por decisão administrativa sumária e direta do Conselho Nacional do Ministério Público, órgão de composição mista parcialmente formatado por Senadores e Deputados.

 Atualmente, a decretação da perda do cargo de membro do Ministério Público só pode ocorrer, conforme previsão expressa da Constituição Federal, após sentença judicial transitada em julgado (art. 128, par. 5º., inc I, “a”). Idêntica garantia é assegurada aos juízes. Sem essa garantia, o membro do Ministério Público torna-se uma presa fácil das vinganças e dos ódios pela natureza de sua ação contra os piores, os mais ousados, os mais irresponsáveis e os mais poderosos.

Coincidentemente, o Senado Humberto Costa, também ex-Ministro da Saúde, em 2006 foi denunciado pelo Ministério Público por um possível envolvimento na chamada “Máfia dos Vampiros”, em que empresários, lobistas e servidores foram acusados de manipular compras de medicamentos (hemoderivados, daí o nome da operação policial – Operação Vampiro) para o Ministário da Saúde, então chefiado pelo referido Senador. Em 2011, vários integrantes do alto escalão do Governo Federal ligados ao Ministério do Turismo foram presos em decorrência da Operação Voucher numa ação conjunta da polícia federal, Ministério Público e Judiciário sob as acusações de abuso de autoridade bradadas por um ou outro parlamentar. Dias depois, 11 de agosto de 2011, foi publicada a PEC 75.

A sombra da demissão sumária por um órgão administrativo afetará, sem dúvida, o ardor combativo dos membros do Ministério Público que diante de uma investigação, denúncia ou ação, analisarão os possíveis efeitos sobre seus destinos funcionais. O desassombro e a coragem, atributos essenciais a qualquer agente fiscalizador, serão abalados pela PEC 75, transformando agentes independentes em instrumentos políticos acovardados perante o poder político ou econômico. Apequenar essas virtudes funcionais do Ministério Público e restringir sua vigilância democrática são os objetivos ocultos da referida PEC, embora a justificativa do senador proponente traga o recheio das "boas intenções": intuito moralizador, "fortalecer o CNMP" etc.  

Exige-se imparcialidade dos membros do Ministério Público e do Judiciário no exercício de suas funções e como agentes do Estado. Todavia, um parlamentar que também é um agente do Estado e exerce funções tão ou até mais nobres, pode destravar a máquina legislativa e influenciar o curso das votações (pelo predomínio da cultura da "liderança partidária") para atender sentimentos pessoais de ressentimento, de vingança ou de simples represália, fazendo verdadeira advocacia em causa própria, violando a isenção e o zelo pelo interesse público, sem qualquer censura ou crítica.

Esse aspecto da atividade parlamentar reflete o afastamento do Congresso Nacional do povo brasileiro, esquecendo de zelar, efetivamente, pelo interesse coletivo e, o que é pior, usando a máquina legislativa como instrumento para satisfazer sentimentos e interesses pessoais ou político-partidários. E na satisfação desses interesses, a estrututa do Estado e a representação política são usados para atacar a própria democracia e seus órgãos guardiães.

Se considerarmos que um quinto (1/5) do Congresso Nacional está sob investigação do Ministério Público ou responde a alguma ação ou denúncia deflagrada pelo Ministério Público fica fácil intuir que alguma coisa precisa ser feita para garantir não só a continuidade do trabalho ministerial, mas a própria sobrevivência da instituição. Embora o sentimento do povo em relação ao MP seja muito claro no sentido de preservar e fortalecer a instituição, nem sempre os cidadãos estarão disponíveis para reunir-se nas ruas aos milhões.

Na reforma política que se avizinha, não por vontade própria da classe política mas por pressão do povo, no item "representação política", se revela necessário discutir e criar meios para "purificar" a atuação parlamentar dos sentimentos pessoais e voltá-la, exclusivamente, para o interesse público qualificado e superior. Precisamos cercar a representação política de mecanismos que torne a responsabilidade política mais concreta.

Não podemos assistir, após qualquer operação mais contundente ou midiática do Ministério Público, a tentativas de desmanche da instituição e de sua capacidade de ação. A democracia brasileira não é um jogo de crianças ou de malfeitores, em que ao perder uma partida lança-se a banca ao chão e exige-se a devolução da aposta ou, pior ainda, parte-se para o desforço pessoal.

1 Tudo o que é feito legalmente dentro de um Estado democrático – todo ato judicial, administrativo ou legislativo - vale como vontade do povo inteiro e de cada um dos cidadãos (Schmitt, 2009, p. 236), ou seja, é, em princípio, legítimo.

Referências:

DAHL, Robert A. A democracia e seus críticos. Tradução de Patrícia de Freitas Ribeiro. São Paulo:WMF Martins Fontes, 2012.

DECOUFLÉ, André. A sociologia das revoluções. Tradução de Heloysa de Lima Dantas. Lisboa:Livraria Bertrand, 1974.

LYRA, Roberto. Teoria e Prática da Promotoria Pública. Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 1989.

SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Tradução de Francisco Ayala. Madrid: Alianza Editorial, 2009.